O exorcista, de William Petter Blatty

Capa da edição que eu li. Por sinal amei essa capa, por mostrar a verdadeira Regan.
A obra é mais famosa pelo filme, que foi adaptado pelo próprio escritor. O filme é uma obra de puro horror, acusada por muitos de ser “propaganda da Igreja católica”. No livro o que menos importa na trama é Satanás, Pazuzu ou o que seja. Pode ser a minha veia racionalista falando, mas o livro não me causou horror, e sim reflexão. O livro pode ser reduzido a estrutura básica da jornada do Herói. A maior delas, dessa heroína invisível que é a mãe.
“Saiu correndo para pegar o trem das sete e dez, para voltar a Washington, levando dor numa maleta preta.”
Eu tenho pouca lembrança do filme, mas enquanto lia a obra algumas cenas iam aparecendo em minha mente. A diferença mais brutal é a desconfiança de Chris a médicos. Uma das coisas que me incomodava no filme é porque ela não havia aceitado por a menina numa clinica. Ela já perdeu um filho, um menino quando ela tinha três anos. Ela não confia em médicos.
Logo no começo do livro, Chris tem um pesadelo com a morte, esse grande fantasma que atravessa toda a trama. O que o demônio diz é que quer matar a menina.  Não é uma batalha pela alma dela. É pela sua vida. Para uma mãe perder um filho é muito doloroso, perder dois inimaginável. Chris tenta fazer de tudo para não perder sua filhinha. Filha que ela tenta não amar tanto. Tenta e não consegue.
A crise de Regan acontece justamente quando ela tem a oportunidade de dirigir, um avanço na carreira. E ela desiste disso pela filha. Procura médicos. Neurologistas. Psiquiatras. E depois disso tudo, mesmo ateia, decide chamar um padre. É quando seu caminhos se cruza com o de Damien Karras.
“Preciso ser dispensado. Já estou tendo problemas pessoais. De dúvidas, quero dizer.
E qual é a pessoa que raciocina que está livre de dúvidas, Damien?”
A narrativa de Karras rola paralelamente a de Chris. Um capítulo para cada. Karras é médico psiquiatra. Padre, começa o livro sendo “conselheiro espiritual” dos jesuítas, ou seja, é o psiquiatra deles. Vê-se que ele sente muita culpa por sua mãe. Acha que fugiu dela e da pobreza indo ao seminário. Tenta ficar perto dela novamente e ser dispensado de suas funções para só lecionar. Mas é tarde demais, e ela falece.
Karras visivelmente já tinha dúvidas de fé. Ele é o herói imperfeito do livro. Em seu primeiro encontro com Chris ele têm medo dela. Que ela seja mais uma das “obcecadas por padres”. E ele passa boa parte do tempo tentando provar que Regan não está possuída. Primeiro para Chris, e depois para si mesmo.
O encontro desses dois heróis acaba em conflito. A mãe Chris, com seu amor infinito, e o filho órfão Damien, com sua dor que também parece não ter fim. A dor de Damien é agravada pela culpa das coisas não ditas e não feitas, que todo relacionamento entre mãe e filho têm. Se engana quem acha que dói menos perder a mãe na maturidade. Pelo contrário, nessa idade somos confrontados com o fantasma de nossa própria morte.
Damien Karras acaba conseguindo provas suficientes para fazer o exorcismo, mesmo que seja apenas pelo efeito curativo que o ritual teria numa possível neurose. Pois no contexto do livro, todas as coisas que acontecem: cama se mexer, o demônio falar latim, força extrema, etc.podem ser explicadas pela ciência, como se telepatia e telecinesia já tivessem sido aceitas, e a dupla personalidade fosse realmente um consenso na Psiquiatria.
É então chamado o padre Merrin, que já havia aparecido no prólogo. Cena que foi encurtada no filme, mas está bem fiel. Merrin já está muito velho, mas é um respeitado arqueólogo e teólogo, já tendo feito um exorcismo na África do Sul que levou semanas e quase lhe custou a vida. Uma das falas mais bonitas do livro, inclusive, sai da boca dele:
“Porque eu acho que a crença em Deus não é, de modo algum, uma questão de raciocínio; eu acho que se trata, afinal, de uma questão de amor, de aceitar a possibilidade de que Deus seja capaz de nós amar…”
Merrin age como o mestre que auxilia o herói em sua jornada. Assim que confronta o demônio, este lhe diz que dessa vez ele vai morrer. Merrin sorri. Conforta Chris e mostra a Karras que todos temos dúvidas. O próprio Merrin em sua adolescência sentiu-se indigno, pois não conseguia amar as pessoas, achando algumas desprezíveis. O exorcista é sim sobre medo de morrer. Mas também é sobre amar.
As considerações dos três parágrafos abaixo são sobre o final do livro, e pode ser que você não queira ler antes de le-lo.
É pelo amor de Karras que o demônio ataca, tentando plantar a dúvida que sua mãe está no inferno, para enfraquece-lo. Quando a carcaça de Merrin já não aguenta mais e o demônio tripudia, pois achava que ia vencer, é Karras que vence o demônio. A cena é diferente do filme, em que vemos como Karras oferece sua vida em troca da de Regan, morrendo na esperança de que nunca mais ninguém morra por Pazuzu.
O ponto de vista é da sala, aonde Chris e Karen, a babá* de Regan estão esperando o resultado do exorcismo. Elas ouvem o barulho do vidro se estilhaçando, o praguejar que sai da boca do padre. E só. Regan está curada. Muito possivelmente o Padre Karras sucumbiu ao stress, a morte recente da mãe e a tensão do ritual do exorcismo e se matou (uma possibilidade, devido a isso já ter acontecido em outros exorcismos). Padre Karras, em seu leito de morte, recebe a extrema unção, e morre em paz. E o ritual fez um efeito psicológico que curou a menina, eliminando as personalidades divergentes. Regan nunca chegou a conhecer seu salvador.
Mas o epilogo sugere que não. Regan olha fixamente para o colarinho de um padre e o abraça, em sinal de gratidão.
Termino aqui de falar sobre o final.
Lembro até hoje de uma critica num GURPS HORROR que acusava o livro de ser “medíocre”. Acho que o autor do livro deve ter lido e sentido o mesmo que eu e se sentiu trapaceado. O livro não parece um terror. Mas na verdade, ele não é APENAS um terror. Está claro que sim, Regan foi possuída por um demônio. Mas o terror do livro está mais no psicológico dos personagens principais em enfrentar seus medos que nos fenômenos sobrenaturais. E é isso que faz a história ir muito além de uma simples história de horror. É sobre sacrifício, amor e esperança. Sobre aquelas pessoas que sempre nós carregam aonde quer que você vá.
*Muita gente que não leu o livro achava que Karen, a babá de Regan, era AMANTE de Chris. Que isso seria um detalhe subliminar do livro, para mostrar o porque a garotinha tinha sido escolhida. Muitos críticos de cinema inclusive compraram essa idéia. Isso acontece porque tanto Karen como o casal de criados que acompanha Chris foram praticamente eliminados do filme, sendo só figuração. Assim como o casal de criados têm uma história paralela envolvendo a filha deles, Karen tem um namorado. E todos eles partilham do sofrimento pelo que acontece com Regan, auxiliando Chris no que podem.

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