Imergir é preciso, viver...

Navigare necesse, vivere non est necesse.
Pompeu, Século I A.C.

O General romano conclamava marinheiros receosos com esse discurso, pelo bem de Roma. Séculos depois a frase foi traduzida para o italiano por Petrarca, no século XIV como “Navegar é preciso, viver não é preciso”. Os dois imortais da língua portuguesa Fernando Pessoa e Caetano Veloso também utilizarem esse provérbio em suas criações. È de Caetano inclusive a canção original “Os Argonautas” cuja corruptela batiza essas linhas.



Relacionado à água, a navegar e também a sonhar, está o verbo imergir. De acordo com o Dicionário Online da Língua Portuguesa, Imergir significa “Mergulhar num líquido; continuar ou permanecer imerso: afundar-se” e seus sinônimos são tão diversos como “afundar, introduzir, mergulhar, inserir, absorver”. Lembrei-me desse verbo no último filme que assisti, Piranha 3D, refilmagem de Alexandre Aja de 2010, da sátira de terror de 1978 dirigida pelo Joe Dante.

Da linha quanto pior melhor, o filme é um festival de violência e seios de fora, com aquele moralismo velho barato, final mais que manjado e outros defeitos que se você desligar o cérebro o filme fica divertido. Mas estava difícil prestar atenção no filme, mesmo com cenas como as atrizes porno fazendo um bale aquático nuas. É um filme que demorei muito a ver, e em verdade não estava perdendo nada não assistindo ele. Ele dividiu minha atenção com as notificações das redes sociais. Eu não consegui imergir no filme. Talvez porque eu não estava no cinema.

No cinema, tenho o costume desde os tempos em que só havia dois cinemas na minha cidade, de desligar o celular. Ser a última pessoa do meu circulo social a ter um smartphone (em 2015) contribuiu para eu manter esse hábito. No cinema, filme bom ou ruim a imersão é completa. Para mim pelo menos, já que numa mistura de má educação e completa dependência do mundo virtual faz muitos não desligarem o celular, ou ainda pior, não calarem a matraca, privando também de quem está ao seu lado de imergir no filme. No caso desses ultimo sempre me lembro de uma das cenas mais catárticas do filme “God Bless America”:




Em casa, vendo o filme na telinha, os filmes (e também as outras artes narrativas, como Literatura e HQ´s) competem a atenção com as redes sociais. Isso é natural. O problema é que a imersão não é necessária somente em narrativas. A qualidade do estudo, de seus relacionamentos e até de seu sono necessita de imersão. Não estou criticando as redes sociais por isso, até porque um blog é uma rede social, mas apenas repetindo o obvio: necessidade de concentração para se apreciar o que se está fazendo não quer dizer que a tarefa, relação ou lazer seja ruim. E a tecnologia não têm nada a ver com isso.

Não é de hoje que há falta de concentração, o grande fantasma invisível inclusive dos escritores. Não é de hoje que muitas pessoas não conseguem ler um livro até o final (o grande clássico Frankenstein, por exemplo, virou sucesso no século XIX devido a uma peça teatral, e não a leitura do romance). O que deixa as pessoas assustadas hoje é a incapacidade de alguns de não conseguirem assistir um filme até o final, ou até mesmo vídeos curtos do youtube.



O Planeta dos Macacos original, livro de1963 
Dizem que inclusive os filmes estão mudando para atender esse público. Que não é preciso prestar atenção em todos os momentos da obra. Sempre acho que isso é um dos motivos do grande sucesso das séries. Dá para olhar o whatsapp e até dar uma olhada no Instagram enquanto maratonam elas, já que realmente (pelo menos para mim) as histórias contadas em 13 horas de muitas das séries hype do momento caberiam no formato longa metragem sem grandes perdas.


Num dos meus livros preferidos, "Planeta dos macacos" os humanos não são dizimados por uma doença nem vencidos numa guerra civil contra os símios. Os humanos apenas se tornam incapazes de ler livros, de apreciar músicas complexas...e os macacos apenas se libertam de seus grilhões e os colocam no pescoço dos humanos. Algo que o filme "Idiocracy" também preconizou. E que parece cada dia mais real.

Eu espero que, num otimismo talvez vão, não seja esse o nosso futuro. Essa discussão toda sobre o "pós-horror' me deu esperanças de ainda ver obras tão lentas quanto "Era uma Vez na América", "Lawrence da Arabia" em telas de cinema. Que talvez ainda vão surgir diretores como Michael Cimino ou Tarkovski. Pois assim como devemos saber apreciar os olhares nos olhos e os silêncios que existem entre nós, o cinema pode e deve ter momentos vazios como a vida. Os novos trabalhos de S. Craig Zahler me encheram de esperanças nesse sentido.

Na dúvida se fiquei pensando em tudo isso apenas por ser um filme ruim, vou assistir outro trash, com o celular no silencioso dessa vez...


Comentários