Arco, Orgulho e Memória

Há dois anos voltei a ser solteiro depois de um segundo casamento. Estava arrumando minhas coisas para ir embora, decidido a ficar com tudo, já que já tinha feito uma grande doação de livros e HQ para um sebo que tinha pegado fogo e acabei relendo a série do Arqueiro Verde publicada pela editora Abril Jovem na Revista Shazam, que ainda tinha de quebra o Capitão Marvel e a mulher Maravilha de closes ginecológicos do Mike Deodato.

Esse ano, após três mudanças de endereço, eu decidi arrumar finalmente meu armário e desempacotar minhas coisas. Acabei relendo essa história de novo, cuja introdução ilustra essa postagem. Na época, a editora DC estava substituindo todos os seus personagens por versões mais jovens, para ver no que dava. Mas é uma história em que me vejo praticamente refletido nela. 

Apesar da popularidade dos filmes da Marvel hoje em dia, os quadrinhos sempre foram vistos como entretenimento barato, e o gênero de super herói e vigilantes como versões pobres dos gêneros policiais e FC. Até mesmo quem é fã dos filmes bilionários de super heróis de hoje não tem interesse de ler os quadrinhos. Em muitos casos, não estarão perdendo nada, mas isso pode ser aplicado as artes narrativas em geral, já que todas, sem exceção estão inseridas num mercado de massa, em que 99% do que é publicado, produzido e distribuído é bem descartável.

O Oliver Queen dessa história é um homem intenso. Esquerdista, cínico, orgulhoso e galanteador como assim foi definido por Dennis O´Neil nos anos 70, beeem distante do "Batman paraguaio" do seriado da CW. O personagem que eu adorava. Não sei se gosto dele porque ele parecia comigo, ou se na verdade por ter crescido lendo ele fui influenciado por ele em fases da vida. Pois apesar do preconceito contra as HQ´s, seus personagens inspiram seu público do mesmo jeito que personagens literários e de cinema, com graus de profundidade que podem não dever nada a outras artes. Com bons criadores logicamente.

O Oliver Queen originalmente era sim um clone do Batman, até com um flechamovel e um parceiro Mirim, o Ricardito. Dennis O´Neil, que escrevia a revista da liga nos anos 70, não podia usar os medalhões da editora (Batman, mulher Maravilha, Superman, etc...) E acabou adotando o personagem como protagonista da revista. E o tornou um reflexo de si, assim como a maioria dos personagens o são, para o bem ou para o mal. Dennis O´Neil foi  grevista, um dos responsáveis pelos quadrinistas se unirem em sindicatos, a se verem como classe trabalhadora e criadora de produtos culturais. Se hoje um artista de quadrinhos e dono da página que desenhou, podendo vende-la como arte depois da publicação de uma revista, é graças a ele. 

Nessa história Oliver Queen morre ao final de algumas edições para ser substituído por Connor Hawke, o filho que ele canalhamente abandonou no hospital (Sim, Oliver Queen era o próprio esquerdomacho!). Ele morre como herói ao impedir um bomba biológica que destruiria uma cidade. Mas a própria história é uma ironia. O que Oliver Queen faz é apenas uma forma pomposa de suicídio. 

Oliver Queen está se autodestruindo. Ele chegou num ponto da vida em que está insatisfeito consigo mesmo. Mas o principal motivo de sua vida estar assim é ele mesmo, e suas escolhas. Seu filho adotivo, o Ricardito, teve problemas com drogas que no fundo fazem Oliver se culpar. As questões ideológicas que o separavam de seu melhor amigo Hal Jordan, o Lanterna Verde, chegaram a agressão física (e aparente morte, mas ele estava vivo e aparece nessa história). Sem seu grande amigo, Oliver acaba se afastando dos outros. Perdeu seu grande amor, pois ele a traiu, e sabia que a perderia se fizesse isso. Mas fez. Porém Queen não é um suicida.

Essa autodestruição acompanha todas as pessoas, em maior ou menor grau. É ser criança, subir na janela do terceiro andar e olhar para baixo, mas também são coisas menores. Mas que podem ser fatais para o animal social que é o homem. É não querer levantar da cama. É não estudar na hora que podia, e devia. É não atender nem retornar o telefonema dos seus pais. Não sair de casa quando quando os amigos te convidam. Um homem intenso como Oliver Queen tem muita vontade de viver, mas essa intensidade o torna mais propenso a essa bipolaridade de emoções.

O que faz um homem? Para Oliver Queen ele era seu arco e seu orgulho. Se tirar um ele se torna um aleijado. Tire os dois e ele não era nada para si mesmo. Na história, Queen novamente procura um monastério para se purificar, em busca de uma muleta espiritual, como eu e muitos já o fizeram, incapazes de lidar com essa besta fera interior.

Mas além do seu orgulho e de seu arco, Oliver, como todo ser humano, é memória. Ele se apega as boas, e tenta desesperadamente fugir das ruins, que sofreu e principalmente das que fez. Os amigos feridos, filho abandonado, tudo que está próximo a ele, mas ao mesmo tempo parece tão distante. Memórias podem machucar, mas também podem curar, se nós deixarmos.
Essa porém não é uma história de redenção, em que Oliver Queen passa por uma série de provações, aprende e morre em paz. Ele morre sem fazer as pazes com seus filhos, sem nunca ter pedido desculpas a seu grande amor e brigado com Hal Jordan. Se há uma mensagem geral que pode ser vista por trás dessa história comercial feita para criar um novo personagem (e sempre há uma história por trás até de comerciais de Margarina) é que as vezes, não há finais felizes. 

Se você deixar, você sucumbira aos seus próprios problemas. As pessoas podem estar lá para te ajudar. Mas é você que têm que se levantar. Pois afinal, por mais que as vezes a gente diga que foi empurrado e traído pela vida, que não temos ninguém e que estão todos contra nós, você pode escolher cair. Pode não levantar.


Assim como o personagem, eu passei por uma encruzilhada, tanto em 2015 como agora. Sofri por minhas escolhas e aprendi com elas. Tenho, para muita gente, habilidade em escrever. Isso e mais cinco reais me permite tomar água em qualquer parte do Brasil. As páginas que postei dessa história praticamente me descrevem em certos aspectos financeiros e sociais. Ser escritor num país como o Brasil é árduo, e não é uma profissão, como ser arqueiro não é uma profissão. Mas só se é escritor escrevendo, assim como só se é arqueiro com um arco na mão.

Eu aprendi com essa história em 2015. Ao rele-la agora, vi que consegui vencer boa parte de minha auto-sabotagem. Menos com a escrita, que foi difícil de levantar. Por isso decidi nesse escalafobético ano de 2017 voltar a ter um blog. Não vai pagar o aluguel. Não vai me tornar famoso. É só parte da disciplina. apesar de saber que sempre se escreve para si mesmo, é bem capaz de nesse momento estar realmente apenas escrevendo para mim mesmo. 

Mas parafraseando o Descartes, eu penso. Portanto escrevo.


Anos depois o Kevin Smith, que no fundo é um cara família e espiritualista (como eu), acabou trazendo Oliver Queen de volta do paraíso (suicida no paraíso? E você achava que Alanis como Deus era provocação suficiente...), e aí o personagem faz as pazes com os filhos Connor e Ricardito, adota uma garota com HIV e casa com seu grande amor, Dinah Lance, me levando as lágrimas. Aí veio "Os novos 52", e desisti da DC Comics...


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